Um dos grandes gargalos para aqueles que almejam trabalhar com futebol é a dificuldade em saber por onde começar. O ambiente profissional do futebol brasileiro é nocivo, com uma grande barreira de entrada que é causa de grande motivação para os entusiastas: a ausência de oportunidades remuneradas. Sim, como em qualquer indústria, é esperado que no futebol os novatos iniciem sua trajetória de baixo e provem seu valor com performance, mas a crença difundida de que o jovem profissional deva aceitar empregar seus esforços em troca de “experiência” e “visibilidade” é algo ofensivo não apenas ao candidato a vaga, mas a indústria como um todo.
É sabido que a realidade orçamentária do futebol canarinho é temerária, com boa parte dos clubes mais tradicionais tendo em seu passivo dívidas impagáveis que crescem a cada temporada. Infelizmente, o cenário ainda não é de grandes investimentos, e isso é algo que o aspirante a jogador/técnico/preparador/analista/executivo deve entender. Mas quando o clube oferece “sua marca e história” como único fator de benefício a qualquer profissional, negando-lhe remuneração por um trabalho que será realizado, ele primeiramente expõe ao potencial empregado a uma série de riscos e, mais importante, compromete o crescimento da própria indústria. Comecemos com o primeiro caso. A grande maioria das equipes do futebol brasileiro funciona através de um modelo associativo, no qual sócios e conselheiros, em ciclos médios de 2 a 3 anos, elegem um presidente para reger o clube. A fiscalização do eleito ocorre, normalmente, através de um Conselho Deliberativo também aclamado via pleito. Raramente estes vencedores dispõem de tempo para se dedicar ao clube, e o cargo acaba sendo muito mais um hobby e fonte midiática do que uma verdadeira ocupação. Com visões de curto prazo, visão distorcida do mercado, conhecimento raso e nenhuma obrigação para com a situação na qual entregarem o clube, normalmente estes cartolas dispõem de no máximo um mandato até se retirarem em virtude das cobranças excessivas, aos quais criticam com veemência. Afinal, eles estão ali “por amor”, então como podem ser cobrados por resultados profissionais?
Agora, imaginem que um estudante de Educação Física, cujos sonhos oscilam entre ser campeão estadual com seu time do coração e vencer a Copa do Mundo com a Seleção Brasileira, esteja buscando um estágio para dar início a sua jornada de treinador. O graduando, mesmo em universidade pública, acumula algumas preocupações financeiras referentes ao montante gasto com o transporte para a faculdade, materiais e alimentação. O estágio pode ser, além de uma oportunidade de ampliar seus horizontes, uma fonte de amortização para tais despesas. Ele consegue uma oportunidade em um clube local de renome, mas que, por não ter vínculo com nenhuma facilitadora, não dispõe de um programa de estágios. Utilizando o peso de sua camisa como artifício de sedução e explicando que embora não disponha de uma vaga remunerada, há oportunidades de crescimento caso o rapaz aceite ser um auxiliar do técnico da Equipe Sub-15, que por coincidência ainda na semana passada havia informado a necessidade de contar com um escudeiro. Com a chegada do bom samaritano, o treinador do Sub-15 agora teria seu auxiliar, o estudante obteria a experiência que procurava e o clube não gastaria sequer um real com isso. Após certa hesitação, pois as contas só com a logística da faculdade não vinham fechando, a oferta é aceita, com a ciência de que a correria irá aumentar e o emocional será fortemente testado. Mas a persistência do rapaz é grande, pois a área técnica é o seu sonho, e nos 8 meses seguintes à sua contratação há uma grande melhoria no Sub-15, e prontamente o rapaz é convidado a acumular seu posto de auxiliar com a análise de desempenho para o time Sub-23. Com o clube brigando contra o rebaixamento e as finanças em um sangramento difícil de estancar, ainda não será naquele momento que seus serviços serão recompensados em moeda. “Mas fazendo bem isto”, garante o cartola, que aparece no clube sempre perto do horário de entrevistas, “você será contratado”. Então o agora auxiliar E analista de desempenho vira noites com o notebook que parcelou em 12x no cartão (pois não havia um no clube que pudesse utilizar) observando jogos, realizando análises notacionais, compondo relatórios e fornecendo um plano de melhoria das categorias de base que levou duas semanas para ser montado, mas que, passado um mês desde que foi entregue encadernado ao dirigente, ainda não foi lido. “Vou dar uma olhada neste fim de semana, sem falta”, garante. Passadas mais algumas semanas, esgotado com o fim do período letivo, com a carga cada vez maior de trabalho e os juros da prestação do cartão não paga, o jovem respeitosamente questiona o cartola que o pediu educadamente para acumular funções a respeito de sua contratação, pois desde seu ingresso no clube dois treinadores do profissional foram trocados e 24 jogadores foram contratados, alguns posteriormente dispensados sem nem jogar. O amigo dirigente o garante que, passadas as eleições, ele será efetivado. Acontece que a revolta da torcida se tornou incontrolável após o rebaixamento que não apenas envergonhou a história do clube com pífias atuações, mas também com os desmandos e antecipações de cota que inviabilizaram a instituição para os próximos dois anos. O rapaz não contava que o amigo dirigente fosse perder a eleição, e que seu sucessor, assustado com a quantidade de dívidas herdadas, fosse demitir todo o pessoal de base visando a formação do time que iria disputar o próximo campeonato estadual. O amigo dirigente nunca o procurou e nem atende suas ligações, e agora ele carrega nada além de algumas prestações do notebook que comprou parcelado… Essa, evidentemente, é uma história fictícia, mas que trazem alguns pontos corriqueiros na história dos que procuram melhorar o futebol. Qualquer um em situação similar teria todas as razões para procurar áreas mais acessíveis, e a atitude do “amigo dirigente” não só comprometeria o emocional daquele frustrado estudante de Educação Física como privaria a indústria de um profissional desejoso de trazer melhorias. Atualmente, embora o número de cursos na área tenha aumentado substancialmente e exista um amplo debate inerente à capacitação, lamentavelmente esta ainda é uma pauta ainda muito fora da agenda dos clubes. São poucas as entidades engajadas na melhoria do ecossistema.
Sim, existem clubes que estão procurando trazer este diálogo para dentro, como o Grêmio, que ocasionalmente realiza sessões de bate-papo com seus influencers ou, em maior grau, o Bahia, que anunciou a criação de sua própria universidade para formação de gestores e profissionais. É triste dizer, mas para grande parte das equipes brasileiras, o investimento na qualificação de seus departamentos ainda é visto como um custo. O leque de cursos e eventos existentes acompanha um total desconhecimento de quais cursos fazer e a quais eventos frequentar. Qual o perfil profissional mais desejado pelos clubes do Brasil? Que cursos consideram fundamentais para o entendimento das atividades a serem desenvolvidas? Quais são os pré-requisitos de seus processos seletivos? Existe um processo seletivo? Os clubes não estão preocupados em desenvolver suas teses de investimento, e assim os profissionais não sabem em que investir. A perspectiva de investimento se torna mais arriscada a medida que a maioria das “oportunidades” para iniciantes não é remunerada, e mesmo aqueles que conseguem chegar na parte da pirâmide onde existe contrapartida financeira enfrentam problemas culturais, como a total instabilidade nos cargos. Treinadores e executivos de futebol têm prazo de validade em grande parte das equipes brasileiras. Os empecilhos podem ser ainda maiores para as mulheres, com os estigmas que o futebol feminino ainda carrega e com o ambiente lamentavelmente hostil no masculino. É impensável o cenário no qual um grande clube brasileiro tenha uma executiva de futebol a frente do futebol masculino, e na improvável hipótese de uma contratação, a tolerância com seus resultados seria ainda menor que o já instável termômetro aplicado ao homem. O passar desta década trouxe uma oferta razoável de cursos e certificações, e a contrapartida é que inexiste uma grade curricular minimamente difundida para quem esteja buscando um norte. A falta de diálogos a respeito deste tema traz um enorme obstáculo ao ambiente profissional, pois é a carência de informação e de ofertas que fomenta a aceitação de trabalhos não remunerados que retarda o já atrasadíssimo futebol brasileiro rumo ao patamar empreendedor. Sob o prisma da caridade e da doação, o Brasil seguirá patinando na busca pelo resgate do rótulo já perdido de País do Futebol.
Rodolpho Moreira - Apaixonado e estudioso do futebol, busca por padrões que expliquem os acontecimentos no esporte - Twitter
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