03/06/19

O BRASIL, A INGLATERRA E O PAÍS DO FUTEBOL

Para Sir Alex Ferguson, o lendário treinador escocês que conquistou 38 títulos em 28 anos no Manchester United, tudo se trata de obsessão. A carreira de Ferguson é marcada por traços obsessivos, e só mesmo um raro nível de foco poderia justificar quase três décadas comandando um clube do porte do United, algo inimaginável até para os padrões europeus. Técnicos midiáticos como Pep Guardiola e José Mourinho nunca ultrapassaram sequer cinco anos no comando de uma equipe, sob alegação de um desgaste pessoal impossível de ser evitado em virtude do nível de comprometimento exigido e praticado no trabalho.

 

Além da singular capacidade de manter o vestiário faminto por conquistas, uma das características mais marcantes de Sir Alex sempre foi seu grau de inconformismo com as derrotas. Por mais iminentes que estivessem, Ferguson se recusava a admiti-las, e conseguia transmitir essa relutância magnificamente aos seus comandados. O maior exemplo dessa negação ocorreu na final da Champions League de 1999, em que o Manchester United perdia por 1x0 para o Bayern de Munique até os 46 minutos do segundo tempo. Aos 49, quando a partida foi encerrada, o placar apontava 2x1 para o United.

 

Apesar de tamanha resistência, nem mesmo Ferguson era invencível. Entre 1992 e 2013 (período em que o técnico esteve à frente dos diabos vermelhos no atual formato do campeonato inglês), houveram oito temporadas nas quais o escocês não sagrou-se campeão nacional. Entre essas edições sem título, por cinco vezes amargou o vice-campeonato. Cinco vezes em que o título esteve a apenas uma posição de distância. E sucedidas por uma rápida reação.

 

Temporadas em que Ferguson foi vice

Resultado na temporada seguinte

1994-1995 (para o Blackburn Rovers)

1995-1996 Campeão

1997-1998 (para o Arsenal)

1998-1999 Campeão

2005-2006 (para o Chelsea)

2006-2007 Campeão

2009-2010 (para o Chelsea)

2010-2011 Campeão

2011-2012 (para o Manchester City)

2012-2013 Campeão

 

O nível de frustração de Ferguson (e, por extensão, dos seus atletas) com o vice-campeonato era tão intenso que se convertia numa fome ainda maior de glórias. Apenas uma vez durante a Era Ferguson no atual campeonato inglês o United passou 3 temporadas sem o título (2003-2004 até 2005-2006). Para compensar os 3 anos em jejum, um tricampeonato em resposta (2006-2007 até 2008-2009). Sir Alex Ferguson era um homem de vitórias, com ocasionais fracassos que eram rapidamente convertidos em mais vitórias.

 

O futebol inglês, universo profissional em que Sir Alex viveu o auge de sua carreira, cultiva uma característica fundamental que permite aos treinadores tornarem-se lendas com trabalhos que atravessam gerações. Há o entendimento de que um ciclo perene de conquistas passa pela determinação em aguentar os obstáculos inevitáveis do trabalho.

Ferguson hoje é patrimônio do Manchester United, mas seu começo nos Red Devils foi turbulento. Assumiu o clube em 1986, e suas tentativas iniciais de implantar diversas mudanças foram altamente questionadas e não apenas uma vez sua saída foi cogitada. O primeiro título, uma Copa da Inglaterra, só veio em 1990. Nas primeiras cinco temporadas no campeonato inglês, em quatro ficou abaixo do quinto lugar. A primeira conquista da liga só veio após um vice no ano anterior.

uol Esporte
(UOL Esporte)

Arsène Wenger, o francês que comandou o Arsenal por 22 anos, conseguiu levar o time londrino ao título nacional já em sua segunda temporada como técnico, mas até chegar ao trabalho que mais marcou sua carreira (a conquista invicta do Campeonato Inglês na temporada 2003-2004, até hoje um feito inédito) amargou 4 vezes o vice-campeonato para o United de Ferguson; mesmo sem títulos de expressão desde 2004, a direção do clube londrino o manteve no cargo até o final da temporada 2017-2018.

 

Bill Shankly, icônico técnico do Liverpool de 1959 até 1974, assumiu o clube na segunda divisão e até conseguir o acesso em 1963 acumulou dois fracassos. O título da primeira liga só veio dois anos após o acesso. O único título internacional (Copa da Uefa de 1972-1973) veio apenas na sua penúltima temporada no clube.

 

A mais recente final de Champions League, disputada entre os ingleses Liverpool e Tottenham, foi marcada por uma intensa cobertura midiática dos treinadores Jurgen Klopp e Mauricio Pochettino, profissionais de trabalhos longevos mas desprovidos de taças até o início da decisão em Madri. A vitória do Liverpool quebrou uma incômoda série de vices de Klopp em finais e perpetuou uma carreira ainda sem títulos de Pochettino. O amante do futebol brasileiro foi bombardeado por um amplo escopo de elogios aos trabalhos de ambos os técnicos e da decisão dos times ingleses em mantê-los mesmo com ausência de conquistas. A tese de que o sucesso no futebol não é pautado apenas por abundância de vitórias e que estas dependem de continuidade no trabalho é bonita, mas não passa de algo excessivamente louvado em terras estrangeiras e pouco incentivado em solo canarinho.

 

Os técnicos são reativos ao fracasso em qualquer parte do mundo. Quando disse que “se você trabalha para ganhar títulos, mais cedo ou mais tarde você alcançará o objetivo”, Klopp evidenciou uma diferença conceitual de alta relevância entre a gestão do futebol brasileiro e a europeia: o entendimento de que o aprendizado nas derrotas pavimenta o caminho das vitórias. No Brasil, o sucesso de um treinador costuma vir em um clube distinto daquele em que ocorreram os ocasos que moldaram suas glórias.

 

Muricy Ramalho conquistou três campeonatos brasileiros com o São Paulo de 2006 até 2008, um com o Fluminense em 2010 e uma Libertadores com o Santos em 2011, mas esse histórico vitorioso foi precedido foi um vice-campeonato brasileiro com o Internacional em 2005 e um da Libertadores com o São Paulo em 2006.

(Doentes por Futebol)

Antes de vencer a Copa do Brasil com o Corinthians em 2009 e com o Cruzeiro em 2017 e 2018, Mano Menezes perdeu uma final como treinador corinthiano para o Sport em 2008. Se vier a ganhar a Libertadores algum dia, não terá sido antes de perdê-la com o Grêmio em 2007 numa final contra o Boca Juniors.

 

No currículo de Cuca estão a Libertadores de 2013 pelo Atlético/MG e o Brasileiro de 2016 com o Palmeiras, mas também estão alguns vices que antecedem essas conquistas: da Copa Sul-Americana, com o Fluminense em 2009, e do Campeonato Brasileiro com o Cruzeiro em 2010 e com o Atlético/MG em 2012.

 

O polêmico Renato Gaúcho venceu a Copa do Brasil com o Fluminense (2007) e com o Grêmio (2016), dois títulos antecedidos por um vice na mesma competição com o Vasco (2006). Também foi campeão da Libertadores com o Grêmio em 2017, mas não antes de tê-la perdido com o Fluminense na final de 2008.

 

Marcelo Oliveira foi por vice-campeão da Copa do Brasil em 2011 e 2012 com o Coritiba antes de ser bicampeão brasileiro com o Cruzeiro em 2013 e 2014. Além dos vices com o Coritiba, ele perdeu outra final de Copa do Brasil com o Cruzeiro em 2014 - foram três vices da competição até ser campeão com o Palmeiras em 2015.

 

O melhor ano da carreira de Abel Braga foi em 2006 quando conquistou pelo Internacional a Libertadores e o Mundial de Clubes. Nas duas temporadas anteriores o treinador havia sofrido derrotas em finais de Copa do Brasil com o Flamengo (2004) e com o Fluminense (2005) para os surpreendentes Santo André e Paulista de Jundiaí, respectivamente.

 

Nossos técnicos mais vitoriosos foram forjados por insucessoS bastante significativos. É assim também no Velho Continente, com a diferença de que derrotas em finais e rebaixamentos, embora não desejáveis, não são apocalípticos. O europeu entende que, dispensando treinadores por estas razões está disponibilizando no mercado profissionais mais experientes e preparados.

 

Essa é uma verdade válida para Manchester United, Liverpool e Arsenal, mas também para clubes de pelotões mais fracos e nacionalidades distintas. No Atlético de Madrid, Diego Simeone foi campeão espanhol em 2014 depois de chegar ao clube três anos antes, em 2011; Felix Magath liderou no campeonato alemão de 2009 a conquista do Wolfsburg, clube que treinava desde 2007; René Girard levou o modesto Montpellier ao título francês em 2012, três anos depois de assumir o clube em 2009; o título do Monaco no Campeonato Francês 2016-2017 ocorreu três anos após a chegada de Leonardo Jardim ao clube em 2014. É difícil superar concorrentes mais ricos sem um processo contínuo em que a tentativa e o erro são partes naturais do trabalho.

 

O sucesso europeu no futebol precisa parar de ser algo que o Brasil apenas reconhece como um produto de condutas mais profissionais; se tais condutas não forem adaptadas ao nosso ecossistema de futebol, continuaremos distantes de recuperar o posto do país que o domina. No Brasil, não haveria um Sir Alex Ferguson - qual equipe esperaria quatro anos pela primeira conquista? Klopp colecionaria demissões, pois como iria resistir a seguidas derrotas em finais? Maurizio Sarri possivelmente teria se aposentado: que técnico hexagenário ainda sem títulos teria oportunidade num clube de estrutura proporcional ao Chelsea? No suposto país do futebol, aniquilamos às possibilidades de desenvolver os responsáveis pela preparação do jogo. A Inglaterra é um caldeirão de nacionalidades e ideias, ciente de que esse caldeirão não pode ferver sem elevadas doses de paciência; no Brasil, estamos frequentemente trocando caldeirões, esperando ebulição imediata. A receita segue inquestionável. Quando a sopa é servida, o cliente reclama da baixa qualidade e é culpado por não voltar para um novo consumo. E vai beber da sopa inglesa, trajando camisa e cachecol do Liverpool enquanto lê um livro de Jurgen Klopp traduzido por uma editora brasileira - afinal, qualquer obra a respeito de um treinador tupiniquim será pautada pelo nomadismo e não pelos processos que permitem a quatro times ingleses disputarem as finais das principais competições de clube do mundo com treinadores da Argentina, da Alemanha, da Itália e da Espanha. O Brasil segue de fora.

Rodolpho Moreira - Apaixonado e estudioso do futebol, busca por padrões que expliquem os acontecimentos no esporte - Twitter


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